Entre Mortos e Vivos: A Realidade Ignorada dos Trabalhadores Funerários

No mundo do trabalho, há profissões essenciais que permanecem à margem do reconhecimento social. Entre elas estão os profissionais que lidam diretamente com a morte — trabalhadores de morgues, cemitérios e agências funerárias — que, apesar da importância vital do que fazem, enfrentam o preconceito, o isolamento e o sofrimento psicológico.

Em Moçambique, esses profissionais asseguram, diariamente, os serviços de limpeza, conservação e sepultamento de corpos, ainda que muitas vezes sejam tratados como invisíveis pela sociedade. Hoje, no Dia Internacional dos Trabalhadores, é importante lançar luz sobre essas histórias.

Entre Câmaras Frias e o Estigma

Caciel Fernando, há uma década atuando na morgue do Hospital Central de Nampula (HCN), conta que chegou à função após uma transferência interna. Apesar da mudança inesperada, ele não hesitou em adaptar-se. “Quando fui colocado aqui, não tive medo. Aceitei e comecei logo a fazer o trabalho”, relata. Com o tempo, lidou com situações extremas, como a recepção de vítimas de acidentes e militares falecidos, mesmo com infraestrutura limitada. Apesar da rotina árdua, Caciel diz estar habituado a ver pessoas o evitarem por conta do seu trabalho.

Empreendedorismo em Meio à Rejeição

Fernando Maçanica, dono de uma agência funerária em Lichinga há 19 anos, iniciou o negócio ao perceber as dificuldades das famílias para encontrar caixões. No entanto, sua iniciativa não foi bem recebida. “Diziam que um dos caixões seria para mim ou para alguém da minha família”, lamenta, apontando o julgamento e a discriminação que sofreu.

O Preço Psicológico do Trabalho com a Morte

Segundo o psicólogo clínico Armando Cumbi, os profissionais desse setor estão constantemente expostos a uma carga emocional elevada. Essa exposição contínua pode gerar esgotamento físico e mental, levando a sintomas de depressão, ansiedade e, muitas vezes, ao consumo excessivo de álcool como forma de lidar com o estresse. “Eles carregam a dor alheia, mas raramente têm espaço para cuidar das próprias emoções”, explica.

Cumbi também destaca que a exclusão social é comum. “São considerados anormais por trabalharem com a morte. Há quem evite até tocá-los, achando que isso os contamina de alguma forma”.

Desvalorização e Invisibilidade Social

Victor Alberto, há seis anos na morgue, confirma que seu trabalho gera afastamento de vizinhos e conhecidos. Ele conta que enfrentou resistência da própria família quando foi transferido do banco de socorro para a morgue.

Para o sociólogo Óscar Naholopa, da Universidade Rovuma, esses profissionais são essenciais, mas ignorados. “Eles integram uma classe de trabalhadores marginalizados, mesmo desempenhando uma função inevitável para todos nós”, afirma. Ele ainda observa que o preconceito é mais acentuado em áreas urbanas, onde há maior segmentação social.

Valorização Urgente e Profissionalização

Naholopa defende a criação de políticas públicas que reconheçam e profissionalizem a atividade desses trabalhadores, oferecendo melhores condições de trabalho, segurança, apoio psicológico e salários dignos. “Sem eles, teríamos uma sociedade sem organização para lidar com a morte”, alerta.

Enquanto muitos os evitam, eles seguem firmes, garantindo que o fim da vida seja tratado com respeito. No Dia do Trabalhador, dar voz e visibilidade a esses profissionais é mais que necessário — é um ato de humanidade e justiça social.

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