No dia 19 de outubro de 2024, cerca de 25 disparos puseram fim à vida do advogado moçambicano Elvino Dias, conhecido como o defensor do povo. O assassinato ocorreu na avenida Joaquim Chissano, em Maputo, e também vitimou Paulo Guambe, representante do partido PODEMOS.
Passados sete meses, o crime ainda não foi esclarecido, mas o impacto da perda ganhou reconhecimento internacional. Elvino Dias recebeu, postumamente, o Prêmio Nelson Mandela 2025, concedido pela associação portuguesa ProPública – Direito e Cidadania.
De acordo com Agostinho Pereira de Miranda, presidente da ProPública, a homenagem visa reconhecer “um advogado que perdeu a vida no exercício da sua profissão”. Ele destacou que, embora a voz de Elvino tenha sido calada, seu exemplo de coragem e integridade continuará inspirando juristas em Moçambique e no mundo.
Elvino apoiava publicamente a candidatura de Venâncio Mondlane à presidência e estava envolvido na coleta de provas contra fraudes eleitorais. Poucos dias antes do atentado, ele apresentou documentos que, segundo ele, contradiziam os resultados oficiais das eleições de 9 de outubro, que deram a vitória ao candidato do partido no poder, Daniel Chapo.
Conhecido como “advogado do povo”, Elvino dedicava-se à defesa de causas sociais e ganhou destaque ao atuar pela Renamo nas eleições autárquicas de 2023. Participava ativamente em manifestações e era uma figura de destaque na Coligação Aliança Democrática.
Na noite em que foi assassinado, o veículo onde estava foi interceptado por uma viatura Mazda BT-50 branca. Dois homens armados desceram do carro e dispararam sem aviso prévio. Elvino morreu no local, enquanto Paulo Guambe foi levado ao hospital, mas também não resistiu. Uma mulher que os acompanhava sobreviveu ao ataque. A Associação Moçambicana de Juízes classificou o crime como “hediondo” e a Ordem dos Advogados o chamou de “assassinato bárbaro”, vinculando o episódio a motivações políticas.
Silêncio oficial e pressão internacional
Apesar dos apelos e condenações de organismos internacionais — como a ONU, Comissão Europeia, International Bar Association e vários governos — as autoridades moçambicanas ainda não apresentaram resultados concretos da investigação. A Procuradoria-Geral da República afirma que o caso está sob investigação. A Ordem dos Advogados acompanha o processo e reclama que a demora aumenta as dúvidas sobre os verdadeiros motivos do crime.
Carlos Martins, bastonário da Ordem, alertou que “quanto mais demorar a investigação, mais cresce a suspeita de que algo está sendo encoberto”. Para ele, o prêmio é não apenas uma homenagem, mas também um chamado por justiça.
A entrega do Prêmio Nelson Mandela, que inclui um valor de 10 mil euros, está marcada para o dia 18 de julho, data em que se celebra o Dia Internacional Nelson Mandela. O valor será destinado à viúva de Elvino, Esmeralda Sousa, que ainda aguarda respostas sobre o assassinato. Nas edições anteriores, o prêmio homenageou juristas como Francisco Teixeira da Mota (2021), Leonor Caldeira (2022), Maria Clotilde Almeida e Paula Penha Gonçalves (2023) e António Garcia Pereira (2024).
A associação ProPública justifica a escolha por demonstrar solidariedade aos advogados moçambicanos e africanos que atuam sob condições difíceis. Segundo Agostinho Miranda, “um advogado jamais pode ser confundido com os interesses do cliente, pois representa pessoas, não as suas causas”.
Para o bastonário Carlos Martins, Elvino foi “um verdadeiro defensor da democracia e do Estado de Direito”, que ensinou à classe jurídica o valor da verdade e da justiça. Há suspeitas de que sua morte tenha sido causada por “esquadrões da morte”, possivelmente ligados a unidades de elite como o Grupo de Operações Especiais (GOE) e a Unidade de Intervenção Rápida (UIR). Essa é uma triste rotina: crimes sem culpados, investigações inconclusivas e um silêncio cúmplice. Para muitos, Elvino foi morto por incomodar, por representar uma dissidência que desafiava o poder e a perpetuação da fraude.
“Eu já morri há muito tempo”
Elvino tinha consciência do risco que corria. Próximos a ele ouviam-no dizer que “um dia, essa luta vai custar caro”. Mas também afirmava: “Eu já morri há muito tempo, quando escolhi não ser cúmplice da mentira.” Para alguns, isso soava como bravura; para os que o conheciam de perto, era um pressentimento.
Em uma das últimas entrevistas, Elvino rejeitou ser chamado de “herói”, preferindo ser lembrado como “um homem comum que não aceitou se calar”. Ele defendia que o silêncio diante da injustiça era o maior crime, especialmente entre juristas. “Se os advogados não defenderem a verdade, quem mais fará isso?”, questionava.
Após seu assassinato, o medo tomou conta dos defensores dos direitos humanos e advogados ligados à oposição e à sociedade civil em Moçambique. Várias ameaças e intimidações foram relatadas. Entretanto, a morte de Elvino também despertou indignação e consciência. Sua figura tornou-se símbolo, mito, mártir e lembrança incômoda para aqueles que se beneficiam do silêncio.
A premiação post mortem do Prêmio Nelson Mandela representa mais que uma homenagem — é uma denúncia e um clamor por justiça. Sete meses após o crime, não há culpados, prisões ou respostas. Apenas o silêncio das autoridades e a resistência de quem não esquece.
Elvino deixou uma lacuna na advocacia moçambicana. Era conhecido por aceitar casos sem cobrar honorários, especialmente para pessoas pobres, vítimas de abusos ou desalojadas. Em uma sociedade marcada por desigualdades, ele era referência — não por populismo, mas por convicção. Atuava em tribunais distritais e no Supremo Tribunal com a mesma paixão e dedicação.
Sua esposa, Esmeralda Sousa, afirma que Elvino “não morreu em vão” e que a família pretende criar uma fundação para promover a justiça e a cidadania.
“Ele sempre dizia que o direito é uma arma poderosa nas mãos do povo. Queremos dar continuidade a essa missão.”
A ProPública, ao entregar o prêmio, evoca o nome de Nelson Mandela, que passou 27 anos preso por lutar pela liberdade. A comparação não é à toa. Ambos acreditavam que a justiça não pode ser seletiva e que a democracia não pode se resumir a um ritual eleitoral. Muitas vezes, é necessário pagar um preço alto pela verdade — até mesmo a vida.
Elvino Dias morreu fazendo o que acreditava. Morreu de pé. E como os grandes, seguirá sendo lembrado sempre que a justiça for ameaçada por balas, máscaras ou silêncios.
No dia 23 de outubro, milhares acompanharam seu funeral no cemitério de Michafutene, entre gritos de “justiça” e “advogado do povo”. O local do assassinato permanece marcado por flores e pedras, símbolo de luto e resistência.
O Prêmio Nelson Mandela 2025 não apaga a dor da perda nem substitui a justiça que tarda, mas mantém viva a memória de um homem que acreditava no poder da lei e que, apesar das ameaças, nunca deixou de lutar.